Sinto que comecei a transbordar
quando tinha doze anos.
Numa noite de férias na praia, na
beliche de cima do quarto poeirento da casa da minha tia, eu me vi olhando para
o teto e pensando que eu não teria muito futuro pela frente. Nunca seria o que
eu queria, nunca faria o que eu queria, nem seria admirada, nem querida, nem
acolhida. Vi-me imersa em tamanha solidão e tristeza que chorei a noite toda,
completamente em silêncio para não acordar as minhas irmãs que dormiam ali
perto.
Eu sentia pela primeira vez que
minha alma parecia vazar de dentro de mim, e que não havia nada que eu pudesse
fazer para retê-la. Doía tanto que eu mal conseguia respirar, e eu não sabia
qual era a origem do vazamento.
Alguma coisa se forçava para
fora. Era um excesso de qualquer dor e tristeza que eu não conseguia descobrir
de onde vinha, e que simplesmente continuou vazando até criar um fluxo como de
uma cachoeira furiosa, e eu não conseguia mais pará-lo.
Era minha alma que tentava
escapar? Eram meus pensamentos? Eram meus sentimentos?
Foi nessa idade que comecei a
escrever, na tentativa de tampar o buraco.
Febrilmente eu preenchia páginas
e páginas e comprava cadernos atrás de cadernos, escrevendo como quem reza uma
novena sem fim. Eu escrevia histórias, escrevia cartas, escrevia músicas,
escrevia crônicas pessoais, escrevia monólogos, escrevia desabafos, escrevia.
Eu não conseguia parar, e página após página o sentimento era o mesmo: eu
estava me desfazendo.
De onde vinha aquilo tudo? Que
tipo de tristezas uma criança de doze anos como aquela consegue acumular?
A expressão daquele fluxo não
ficou mais fácil conforme os anos se passaram. Pelo contrário. É esperado que
adolescentes sejam esquisitos, que façam “coisas para chamar atenção”. Por um
tempo, influenciada pelo tipo de energia que me cercava, eu até tive esperanças
de que um dia eu pararia de escrever. Que o fluxo fosse minguando aos poucos,
acalmando e secando e revelando debaixo daquela torrente uma adulta comum. Que
toda aquela turbulência iria simplesmente ser suplantada pelo cotidiano
ordinário de uma existência comum como todas as outras.
Não diminuiu, não passou, não
acabou. Nada.
Numa espécie de torpor sem fôlego
eu me vi aprendendo a desenhar, e depois a pintar, e depois a fotografar, e, se
posso ser pretensiosa em dizer, até a esculpir. E o fluxo não encontrava calma
nas formas de expressão. Ele furiosamente se jogava neles como se pulasse para
o abismo, me atingindo com o impacto de uma explosão galáctica.
Eu aprendi a jogar as cartas e
vislumbrar o Outro lado nelas. Eu aprendi a ler as estrelas, a contar as luas,
a sentir as auras e a ver o passado além do nascimento.
E o fluxo não se acalmava.
De onde vinha aquilo tudo? Como
poderia um ser humano conter tanta coisa dentro de si e ao mesmo tempo viver
tentando se equilibrar na espessura das folhas de papel que eu acumulava
viciosamente?
Algumas pessoas são enormes, como
constelações. Algumas pessoas não cabem, simplesmente, dentro do espaço que
destinaram a elas – seja o espaço físico ou mesmo psicológico, emocional,
espiritual. Algumas pessoas nem forma são: são canais que interligam lados e
lados do universo e os torcem e misturam como num caleidoscópio
ultradimensional.
Vejo várias dessas pessoas
andando por aí sem entender o que fazem aqui, se perguntando por que não cabem
no mundo. Não cabem porque transbordam desse mundo e tocam outros, diferentes,
inexplorados. Suas extremidades nasceram bem além desse corpo, e com elas essas
pessoas podem tocar estrelas longínquas e sentir sentimentos de outros tempos.
E o fluxo do universo não termina
nunca.
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